FONSECA,
Pedro C. L.; SOUSA, Fábio D’Abadia de. Literatura e fotografia: o anseio pela
apreensão do instante. SIGNÓTICA, v.
20, n. 1, p. 149-174, jan./jun. 2008. Disponível AQUI.
No
artigo, os autores Pedro Fonseca e Fábio D’Abadia de Sousa abordam as
inter-relações entre literatura e fotografia, sob a perspectiva de observar os
principais pontos em comum em meio às duas manifestações artísticas. Para isso
respaldam-se na afirmação de Susan Sontag (2004), de que a fotografia é a arte
que mais se aproxima da poesia.
Considera-se
uma dádiva da fotografia a possibilidade de fixar momentos da existência. Logo
após a sua invenção, ocorreu a ideia de que o real e o instante podiam ser
apreendidos, numa forma de representação próxima à percepção. Rosalind Kraus em
seu texto “O fotográfico” (1990), distingue o status da percepção e
representação, definindo que o primeiro seja mais valorizado, uma vez que há o
contato com o real, enquanto que o segundo é sempre uma recriação do real por
meio de signos. Assim, com a fotografia, “[...] teve-se, pela primeira vez, nas
artes da representação, a idéia de que o real e o instante podiam ser apreendidos,
numa forma de representação que se aproximava bastante de uma percepção. [...]
ocorreu uma sensação de vitória contra um dos fenômenos mais misteriosos da
vida: o tempo.” (p.151)
Nesse
contexto de surgimento da referida linguagem artística, ocorreriam mudanças e
configurações no meio artístico após a Primeira Guerra Mundial. O Modernismo provocou o uso
de linguagens de fragmentação (estilo inaugurado pelos simbolistas), reflexo de
um homem espantado com rápidas mudanças culturais resultantes da
industrialização e das guerras. “O tempo se converte numa série de instantes
fragmentados, e o sentido de continuidade cede lugar à descontinuidade.”
(SHEPPARD, 1989, p.266 citado por
FONSECA; SOUSA, 2008, p.152)
Com
a necessidade de atender ao “tempo fragmentado”, solicita-se “[...] uma nova
linguagem para exprimir o estranhamento do contato do homem com o real da
modernidade, quando as palavras convencionais já não são mais suficientes para
dar vazão aos sentimentos de estarrecimento diante da solidão que cresce,
proporcionalmente, ao aumento da população das cidades e ao avanço das máquinas
nos mais diversos setores.” (p.152-3)
Décadas
posteriores, no meio literário, Fernando Pessoa e Clarice Lispector falavam
acerca da “exigência de recursos múltiplos para a expressão da complexidade dos
sentimentos humanos.” (p.153) Em seu livro “Água viva”, a autora relaciona a
imagem e a palavra através de uma narradora, que é escritora e pintora e
reflete as possibilidades de expressão entre a pintura e a palavra escrita e
falada.
Nesse
contexto a personagem-narrador dispõe do conceito do instante-já: “a fração de segundos em que a vida se manifesta e que
é impossível de ser apreendido; é algo que pertence à quarta dimensão [...].”
(p.154) Esse conceito de Lispector dialoga com a fotografia; o fascínio que
contorna esta linguagem e a literatura justifica-se pela ambição de ambas de
reproduzir o instante de modo convincente. As similaridades entre elas vão mais
além, pois as ferramentas que empregam se aproximam e complementam: enquanto na
literatura a palavra converte-se em imagem, na fotografia as imagens geram
palavras.
“Quero
escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante. Aprofundo as palavras
como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra [...] § O que te falo
nunca é o que te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no
entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. Um instante me leva
insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas
geométrico como as figuras sucessivas num caleidoscópio [...]. O que te digo
deve ser lido rapidamente como quando se olha.” (LISPECTOR, 1980, p. 14-17 citado por FONSECA; SOUSA, 2008, p.154)
Foi
o Modernismo o momento em que ficou mais clara a relação da fotografia e
literatura, mas segundo Susan Sontag, isso já acontecia, pois Honoré Balzac foi
um dos pioneiros da escrita literária com características fotográficas; ocorre
em sua obra a antecipação da forma característica da percepção, estimulada
pelas imagens fotográficas. Tal característica gera uma descrição
excessivamente minuciosa comparada à fotografia, “o detalhismo da descrição
apoia-se no detalhismo e no instantaneísmo que lembram imagens fotográficas.”
(p.158)
Há
também visualidades em cenas descritas em “Ulisses” por James Joyce, uma vez
que este alegou que as palavras convencionais, usadas no dia-a-dia, “[...] são
insuficientes para expressarem o turbilhão de imagens que pode se formar em
nossas mentes.” Assim, o autor lança mão de uma maneira mais imagética de
arranjar as frases e vocabulário, aproximando-se da “[...] fotografia de cunho
artístico, a que ressignifica a realidade, ou seja, mostra além do que pode ser
visto num primeiro momento.” (p.158)
Segundo
Auerbach, a problemática de apreensão do instante também se verifica na poesia,
uma vez que esta “permite, talvez com mais maestria, em virtude da sua natureza
formal mais fragmentária, investigação em torno dessa propriedade do instante.”
(p.164) A poesia é um tipo de mensagem linguística que valoriza tanto o
significante quanto o significado – tanto a visualidade da palavra, quanto o
seu sentido são elementos de equivalente importância.
Mais
um ponto de convergência refere-se ao aspecto teatral da fotografia e sua
capacidade de criar cenas (ideia defendida por Roland Barthes e também Clarice
Lispector).
Os
autores comentam no texto a poesia de Cesário Verde, o qual inaugura na
literatura portuguesa o “realismo fotográfico”, a poesia sempre frente à
realidade, fria e objetiva. “A busca pela fixação do instante, como uma das
principais ambições da arte impressionista, levou Auguste Renoir a declarar que
o papel desse tipo de pintura é igual ao do andarilho casual que, enquanto passa,
capta com o olhar este ou aquele fragmento de vida.” (p.169-170)
Opina-se
que, dentre as influências da fotografia, uma delas diz respeito à provocação
de escritores para a necessidade de dedicar mais atenção ainda à realidade,
apurando sempre o olhar para apreensões do cotidiano – em mais um ponto o fazer
literário a aproxima-se do fotográfico. “Para o senso comum, talvez, o que
interessa à poesia é a realidade interna das pessoas, sendo que, para a
fotografia, sobraria apenas o mundo exterior. Entretanto, são os fragmentos das
múltiplas realidades que constituem a matéria prima dessas duas modalidades
artísticas.” (p.170)
Referências
AUERBACH,
Erich. Mimesis: a representação da
realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2002.
KRAUSS,
Rosalind. O fotográfico. Barcelona:
Editorial Gustavo Gilli, 1990.
LISPECTOR,
Clarice. Água viva. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980.
SONTAG,
Susan. Sobre fotografia. Tradução de
Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.